O bacalhau em Portugal é conhecido como o “fiel amigo”! É o fiel amigo porque em tempos de guerra esteve lá para alimentar o povo, que em temos de crise e fome (e nós sabemos como foram muitas) era o alimento base, que em tempos de jejum imposto pela religião esteve lá como alternativa à carne. O bacalhau acompanhou Portugal ao longo de muita da sua história, mas muito especialmente desde o século XIX até aos dias de hoje. Diz-se até que temos 1001 maneiras como fazer bacalhau, ou que há pelo menos uma receita de bacalhau para cada dia do ano.
Esta curiosa relação entre os portugueses e o bacalhau é bem descrita na famosa frase de Eça de Queiroz “Os meus romances no fundo são franceses, como eu sou em quase tudo um francês – exceto num certo fundo sincero de tristeza lírica, que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho, e no justo amor do bacalhau de cebolada.”
Mas como é que um país virado para o mar se vira para um peixe seco que nem é pescado na sua costa? Vamos tentar explorar o porquê da importância e do abundante consumo de bacalhau seco pelos Portugueses.
Historia do Bacalhau em Portugal
Os Pioneiros na descoberta e uso do Bacalhau foram os vikings que o pescavam em abundância nos mares frios perto dos países nórdicos. Além de o consumirem, os Vikings também comercializavam bacalhau com o resto da Europa, especialmente a Inglaterra e Flandres. Nessa altura os Vikings secavam o peixe ao ar livre até endurecer de forma a preserva-lo e depois ser consumido nas longas viagens que faziam.
Em Portugal, o consumo do Bacalhau começou no século XIV – há tratados de comércio entre Portugal e Inglaterra no qual Portugal trocava Sal por Bacalhau. E em meados de 1500, Portugal começa a pescar Bacalhau na “Terra Nova” (Canada). Acredita-se que os Portugueses começaram a pescar bacalhau na “Terra Nova” por engano, na tentativa de encontrar a contra costa das Índias os Portugueses navegavam para oeste deparando-se com a “Terra Nova” e Gronelândia. Realizaram depois que além de não ser a contra costa da Índia, era uma zona muito favorável para a pesca de bacalhau.
Mas a pesca do Bacalhau pelos Portugueses na “Terra Nova” durou pouco tempo, no século XVI as tripulações Portuguesas são praticamente expulsas da Terra Nova por Corsários Ingleses e Franceses. Sendo a pesca então dominada por eles.
Até ao Século XIX, em Portugal não se consumia bacalhau em larga escala, era um alimento das classes abastadas – da casa real, da Aristocracia e dos hospitais da Misericórdia. O bacalhau era consumido mais rotineiramente no interior, visto que no litoral comia-se sardinha.
O consumo do Bacalhau em larga escala começou no Século XIX – era um peixe fácil de conservar e transportar para o interior de Portugal ao contrário do peixe fresco. E começou a entrar na dieta alimentar de Portugal.
Os ingleses era um principal fornecedor de Portugal, sendo o mercado português quase um monopólio destes e por isso era chamado o “Bacalhau Inglês”. Portugal só começou novamente a aventurar-se na pesca de bacalhau a partir de 1885 pela Companhia de Pescarias Lisboneses com capitais privados. Mas a pesca era incerta e altamente tributada, tendo que Portugal importar grande parte do bacalhau.

Bacalhau e o Estado Novo
O consumo exponencial de Bacalhau surge com o Estado Novo, a partir de 1920. Até à data Portugal importava a maior parte do bacalhau que consumia. A pesca em Portugal, de bacalhau e outros peixes era desorganizada, com pouco investimento e muito irregular. Basicamente as companhias piscatórias não funcionavam, e o povo passa fome.
Tendo em conta este panorama Salazar reformula a questão do bacalhau, centraliza a organização da pesca de bacalhau no estado, fomenta a criação de cooperativas e carteliza o abastecimento. A criação da famosa Campanha de Bacalhau tem como objectivo principal a substituição da importação do mesmo, a redução da dependência externa e garantir o abastecimento alimentar do país. O bacalhau era tido como “pão das marés”.
Esta campanha de Bacalhau incutida pelo Estado Novo tem relativo sucesso. E em 1934, Portugal pesca 11% do bacalhau consumido, tendo como pico máximo na década de 50 e 60, pescando 70 a 80% do bacalhau consumido.
De forma a garantir que o bacalhau seja o alimento Nacional, várias campanhas viajam até à Terra Nova em barcos a vela, semi-motorizados e faziam pesca à linha. A transição para a pesca de arrastão com barcos modernos foi tardia e lenta, o que eventualmente ditou a morte deste sector na década de 70.

Como era a Pesca do Bacalhau
A pesca na Campanha de Bacalhau era uma aventura digna de uma epopeia, a forma como o fizeram é tão incrível que parece inventado. A pesca era feita em linha, ou seja, os pescadores iam num pequeno barco (um dóri) e em pleno mar lançavam uma linha composta por centenas de anzóis com isco e iam puxando o bacalhau para dentro da dóri. No final do dia, ou quando a dóri estava cheia, voltavam ao bacalhoeiro.
A pesca de Bacalhau começou em 1934 pela Campanha de Bacalhau criada pelo Estado Novo. A época da pesca de Bacalhau durava cerca de 6 meses, começava em Abril ou Maio e quando os bacalhoeiros estivessem cheios regressavam. A frota de bacalhoeiros (os lugres) iniciava a viagem em Belém, Lisboa, onde eram abençoadas com uma missa solene, era feita uma grande festa e partiam para a Terra Nova e Gronelândia. Os lugres eram barcos à vela e veleiros semi-motorizados, que levavam os dóris, pequenos barcos de madeira utilizados para a pesca á linha. O lugres tinham capacidade de carregar entre 900 e 950 toneladas de bacalhau salgado.
As dóris eram sorteadas ao pescador, que depois as personalizava a seu gosto. O barco de madeira era simples tinha apenas um par de remos e uma vela. Por volta das 5 da manhã os barcos eram largados no mar e os pescadores afastavam-se centenas de metros do “navio-mãe”. Quando as dóris estivessem carregadas de bacalhau, regressavam e fazia-se a contagem do bacalhau. Depois tinha-se que tratar e escalar o bacalhau. Este tinha que ser bem aberto, para ser salgado no porão. Este processo era muito importante, se o bacalhau não ficasse bem salgado contaminava o stock todo. Quando o processo todo terminasse, estava feito o dia e no dia seguinte os pescadores voltavam ao mar.
Este tipo de pesca era um trabalho duro e perigoso, os pescadores tinham de enfrentar o vento e a ondulação em alto mar, o perigo de embaterem num icebergue e o nevoeiro que era frequente. Muitos não conseguiam regressar para o bacalhoeiro e morriam sozinhos em alto mar.
Além destes perigos durante a 2ª Guerra mundial, Portugal que era um pais neutro e não cessou a pesca de bacalhau. Durante a travessia do Oceanos Atlântico dois bacalhoeiros foram afundados por submarinos, o Maria de Gloria e o Delães. Depois desse evento começou-se a pintar os navios de branco com o nome e a nacionalidade bem pintados, ficando assim conhecida como “White fleet”, a frota branca. Esse acordo com os Aliados possibilitou que os bacalhoeiro circulassem no Oceano Atlântico sem serem atingidos.

Apesar da pesca em linha não ser invenção Portuguesa, nessa altura os Portugueses eram já os únicos a pratica-la. Os restantes países Europeus começaram a utilizar arrastões para pescar bacalhau em massa na década de 20, nunca mais voltaram a outros tipos de pesca. Em Portugal, o uso de arrastões só começou a partir da década de 40, tendo atingido os 17 arrastões na década de 50, mas nunca chegou as níveis adequados. Além de não usarmos arrastões, ainda usávamos veleiros semi motorizados que apesar de serem barcos espectaculares já não eram os mais apropriados. Este tipo de pesca era arcaica e pouca eficiente, para não falar de que era extremamente perigosa e desgastante.
Sempre que penso nesses pescadores nas suas pequenas dóris em alto mar num ambiente hostil, vejo-os como heróis. Um pequeno barco no meio do oceano, munidos de uma linha de pesca com o objectivo de apanhar o máximo de bacalhaus que podiam enquanto tinham que enfrentar todos os perigos daqueles mares…
É difícil julgar o passado com o conhecimento de hoje, mas à posteriori parece ter sido muito mais um acto de teimosia do Estado, que não queria admitir as suas falhas. Mas nunca saberemos o que teria acontecido se fosse de outra forma, se tivesse havido investimento adequado na modernização da frota e na segurança.

Bacalhau em Portugal nos dias de hoje
1974 dita o último ano em que uma frota de bacalhoeiros parte para a Terra Nova, o que coincide com a a queda da ditadura em Portugal. A pesca em linha de bacalhau em Portugal era obsoleta. Foi só possível enquanto conseguiram recrutar homens para a pesca, fornecer crédito barato aos armadores e conter artificialmente os preços do bacalhau de forma a que o bacalhau nacional vendesse.
Além do mais, a partir da década de 60 as regras mudaram, foi o fim da liberdade sobre os mares e a proibição da sobrepesca. Começaram a surgir as restrições da política comum de pescas da Comunidade Europeia, e em 1992 o fecho dos grandes bancos pelo governo do Canadá limitando a pesca no Árctico.
No entanto, hoje em dia continuamos a adorar bacalhau, não há como dar a volta. Só que agora consumimos bacalhau da Noruega – 70% do Bacalhau que consumimos vem da Noruega e consumimos 20% da captura mundial de Bacalhau. Temos ainda alguns bacalhoeiros a pescar na zona económica da Noruega e no mar de Svalbard mas a quota de pesca de bacalhau para os Portugueses é muito reduzida.

A Seca e Salga do Bacalhau (ou Cura de Bacalhau)
Desde de antigamente até aos dias de hoje que o processo de cura do bacalhau começa nos bacalhoeiros. Após a captura escala-se o peixe, ou seja, faz-se o corte ventral do bacalhau, removendo os dois terços anteriores da coluna vertebral e restos da bexiga natatória. O peixe fica aberto com o tradicional e característico aspecto do Bacalhau. O peixe é depois lavado removendo todos os restos de vísceras e coágulos de sangue resultantes da sangria. É imediatamente salgado cobrindo-se a parte ventral com sal em quantidade suficiente que garanta a eficácia do processo.
Seguidamente é empilhado em camadas consecutivas até encher as tinas. Para finalizar o processo o bacalhau é submetido a prensagem pelo menos durante 30 dias. Hoje em dia o peixe é mantido numa câmara frigorífica (10±2ºC) até chegar a terra. A este bacalhau chama-se Bacalhau verde.
Quando chega a terra o bacalhau verde é lavado para remover todo o sal e é secado para desidratar o peixe. Este processo é designado de quebrar. Hoje em dia essa secagem é feita em estufas durante dois a quatro dias a temperaturas que oscilam entre os 18 e 21ºC, com uma humidade relativa do ar que varia entre os 45 a 80%. Os entendidos dizem que a desidratação não deve exceder os 30 % de humidade.

O bacalhau muitas vezes também é congelado em alto mar e só depois em terra é que é salgado. Para isso, primeiro tem que ser descongelado depois a cabeça é cortada a direito, não dando o aspecto tradicional do peixe, podendo ter algumas mazelas na carne ao longo da zona da espinha.
O processo de salgar o bacalhau e depois secar ao ar livre começou na costa Basca em Espanha. Portugal influenciado pelo norte de Espanha tornou este processo de cura seu e aperfeiçoou-o.
Antigamente a secagem do bacalhau era feita ao ar livre nas secas no Algarve, Margem Sul do Tejo, Setúbal, Figueira da Foz, Aveiro e Viana do Castelo. Geralmente era um trabalho feito por mulheres que estendiam o peixe em cavaletes inclinados na direcção do sol. Ao fim da tarde o bacalhau era recolhido e prensado sobre uma grande rodela de madeira com a pele do bacalhau virado para baixo.
Havia também a chamada cura amarela que era a mais desejada pelos apreciadores em que o bacalhau era seco sem ser colocado directamente no sol, e sempre que o sol fosse muito intenso era recolhido. Isto fazia com que o Bacalhau ficasse com um aspecto amarelado acastanhado ao bacalhau, parecia fumado sem o ser. Era um processo de cura muito utilizado na Inglaterra.
Se este é um tema que gostam de explorarar, aconselhamos visitas ao Navio-Museu Gil Eannes em Viana do Castelo e ao Museu Marítimo de Ílhavo. Grande parte da informação recolhida para este artigo foi obtida dos livros de Álvaro Garrido, um grande especialista da pesca do Bacalhau em Portugal.
* Foto de Cover de paradoxdes via Depositphotos
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